Membro da APLJ – Academia Paraense de Letras Juridicas, Professor da UFPA (aposentado), Ex-Secretario Municipal de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de Belém/PA, Advogado militante.
A pandemia do COVID 19, dentre outras inúmeras consequências na saúde pública e na economia, tende a causar impactos nas eleições municipais deste ano no Brasil. Muitos pronunciamentos de magistrados, políticos, jornalistas e cidadãos de modo geral interessados no tema, já traçam cenários para o futuro que precisam ser considerados.
O Tribunal Superior Eleitoral, por exemplo, criou um Grupo de Trabalho que vai avaliar as influências da pandemia no pleito que se avizinha e como a Justiça Eleitoral deve se conduzir diante do problema, ai consideradas as condições operacionais preparatórias das eleições e do próprio dia da votação.
Ocorre que, mesmo sem um diagnóstico muito preciso, muitas opiniões foram manifestadas, sem que fossem levadas em consideração questões jurídicas importantes como pretendo demonstrar neste artigo. Para muitos, o adiamento do pleito para novembro ou dezembro, p. ex., seria viável, com a alteração do calendário eleitoral no tocante aos eventos mais importantes, como a escolha dos candidatos em convenções, registros de candidatura e propaganda eleitoral. Em tal cenário, não haveria necessidade de prorrogação de mandatos dos atuais prefeitos e vereadores.
Outra solução cogitada é a pura e simples prorrogação dos mandatos para fazer coincidir as eleições municipais com as eleições estaduais e federais, ai incluída a escolha do próximo Presidente da República. Essa tese da coincidência das eleições não é nova, precede a crise do COVID 19, mas demandaria enfrentar o tema do quadriênio da duração dos mandatos eletivos.
Sobre isso existe uma proposta de emenda constitucional (PEC nº 56/2019), que pretende fazer a coincidência das eleições e tramita junto com a PEC nº 376, que é de 2009, e tem o mesmo objetivo.
No tocante ao adiamento das eleições sem repercussão no prazo dos atuais mandatos, penso que, do ponto de vista jurídico, isso não seria possível face ao princípio da anualidade para alteração do processo eleitoral, tal como previsto no art. 16, da Constituição Federal. Não ignoro que há opiniões em contrário mas entendo que as condições emergenciais dadas pela crise da COVID 19 não justificam uma interpretação que despreze o requisito da anualidade para a alteração da legislação eleitoral. Ressalto que a redação atual desse dispositivo decorre da EC nº 4/93, que, contudo, apenas tornou mais claro, aquilo que o constituinte originário havia prescrito: “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”.
Quanto à mudança do calendário eleitoral, o fato configura alteração no processo eleitoral, pelo que uma nova data para o pleito e tudo o que a ele estivesse relacionado teria que respeitar o princípio da anualidade.
Sobre a natureza do dispositivo que condiciona a possibilidade de alteração do processo eleitoral ao interregno de um ano, o STF, no julgamento do RE 633.703/MG, com repercussão geral, portanto fixando entendimento que deveria ser seguido em todas as decisões sobre o mesmo tema, assentou que a Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/2010), não poderia ser aplicada nas eleições daquele ano. O item 1 da ementa é relevante para que se entenda a natureza do art. 16, como cláusula pétrea, portanto não suscetível de alteração pelo constituinte derivado, bem como para a compreensão do que é o processo eleitoral. Vale a transcrição.
LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA).
- O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 1152960. 65 Supremo Tribunal Federal Coordenadoria de Análise de Jurisprudência DJe nº 219 Divulgação 17/11/2011 Publicação 18/11/2011 Ementário nº 2628 – 1 RE 633.703 / MG realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso.
Vale destacar que o precedente citado na ementa acima, a ADI nº 3685, tratava da aplicabilidade ou não, da alteração das regras sobre coligações partidárias introduzidas pela EC nº 52/2006, que modificou o art. 17, § 1º, da Constituição.
Entendeu o Supremo, naquela ocasião, que no caso da alteração constitucional pretendida pela EC nº 52/2006, que o constituinte derivado não poderia desrespeitar o princípio da anualidade previsto no art. 16 da CF.
Como se vê, a modificação do calendário eleitoral implica em alteração do processo eleitoral coisa que só poderia acontecer, por lei ordinária, ou emenda constitucional, com a observância do princípio da anualidade, consoante entendimento consolidado do STF.
Contudo, não é previsível o quadro sanitário e a situação econômica do país nos próximos meses e se isso pode efetivamente determinar o adiamento do pleito. Já há inclusive decisão judicial, absolutamente extravagante do ponto de vista jurídico determinando que os recursos do Fundo Eleitoral (FEFC) destinado ao custeio das eleições e que deverão ser repassados ao TSE em 1º de junho sejam usados em medidas de combate ao COVID 19.
Há um aparente conflito dos valores positivados em princípios e garantias no texto constitucional, que desafiam os intérpretes a resolver essa antinomia.
Muitos irão preferir a teoria de que a uma hierarquia móvel (Guastini) de princípios constitucionais que terminam por revelar simples preferências dos intérpretes ou discricionariedade apresentando o que Eros Grau chama de juízo de oportunidade e não legalidade. Mesmo que a posição do intérprete não seja pela adoção do princípio da hierarquia móvel, mas pelo método de menor dano a outro princípio igualmente relevante (Alexy), sempre prevalecerá na decisão, forte carga subjetiva do intérprete como aliás, sempre acontecerá, qualquer que seja o método de interpretação adotada.
Na questão das eleições, certamente não será diferente, na decisão a ser tomada sempre deverá favorecer um dos interesses em conflito. Aguardemos.
EGIDIO SALES
LUCAS SALES
Advogados Eleitoralistas