Aprender com o aluno para, um dia, chegar à condição de professor
Muitas palavras da língua portuguesa, sobretudo a falada no Brasil, que nunca deve ser chamada de língua brasileira, porque isso não existe, se assemelham a osgas que perdem o rabo. Continuam existindo, ficam menores e mais ágeis. Sorte das osgas que o rabo volta a crescer. Sorte das palavras que não retornam ao tamanho originam e, algumas, continuam encolhendo.
Auto-ônibus perdeu o auto e ficou ônibus. Reduziram-na para bus, que esticou, malandramente, para buzão. E de buzão caminhou para GOL – grande ônibus lotado. Uma deliciosa farra com o idioma. Pneumático se metamorfoseou em paneu. Televisão encolheu para televisor e hoje é TV. Bicicleta é baike e, para os mais íntimos, magrela.Vossa mercê virou vós mecê, que virou você, que virou ocê e agora é cê; Mais recentemente, me dei conta de que controle remoto encolheu para controle. A palavra remoto deixou de ter utilidade.
Com a pandemia, a língua foi buscar no depósito do esquecimento a palavra remoto e deu a ela um banho de loja, um “up”, digamos assim, forma reduzida de upgrade. Além de chique, de dizer que a criatura está em trabalho remoto, passou a ser sinônimo de eficiência. Sinaliza que o trabalhador está tendo o controle – ainda que remoto – das ferramentas que, até março, só eram manipuláveis em ambiente presencial. Impensável pensar, agora, que, num passado recente, o controle remoto era motivo de desavença entre casais e estímulo à preguiça.
Me lembro do tempo em que os articulistas iam, todos orgulhosos, à Redação de “O Liberal” entregar seus textos ao Redator-Chefe. Mais presencial que isso não existia. Todos, exceto um: João Malato. Ele possuía a regalia de passar a coluna diária ao motorista de empresa, que subia ao seu apartamento, no “Manoel Pinto da Silva”, às 16 horas, para receber as duas laudas datilografadas com argumentos de uma direita raivosa, que avançava contra quem se mostrasse contrário ao regime militar. Hoje, seria defensor ferrenho de Bolsonaro. Malato foi um Olavo de Carvalho – com mais talento, preparo e compostura, registre-se – avant la lettre. Com o email, tudo mudou. O máximo que os autores fazem é ligar para saber se o texto chegou.
Aos sábados, o mais cuidadoso de todos os colaboradores do jornal, Cléo Bernardo de Macambira Braga, o dr. Cléo, atravessava a Redação, com sua vasta cabeleira branca e um enorme sorriso no rosto, cumprimentando todo mundo, para rever seu artigo publicado sempre aos domingos. Acho que somente ele e Carlos Rocque tinham esse cuidado de escritores profissionais.
Como quase 40 anos de magistério, ainda não havia experimentado o sistema de aula remota. Com o isolamento obrigatório, passei a participar, a distância, dos cursos de mestrado e doutorado. A experiência com a graduação foi o que de mais rico me aconteceu, excetuando, em outra escala, os módulos de interiorização que ministrei em Santarém, Altamira e Abaetetuba, nos anos 90.
Nunca tive alunos superando tantas barreiras, com dificuldades de todas as formas. Cada vez que entrava na sala, entendia que estava fazendo mais do que ministrar aulas. Eu era uma parte da ponte que aquelas criaturas sem internet, com bibliotecas precaríssimas e com livros ainda mais escassos construíam para o futuro. Muitas vezes, minha mala com livros e textos copiados era mais volumosa do que de roupas para 30 dias.
Mais de três décadas se passaram entre a vivência do interior e o trabalho remoto com jovens da capital, que desejam ser jornalistas. O esforço institucional ajudou a reduzir as imensas dificuldades dos alunos. Todos fizeram sua parte e o que parecia impossível aconteceu. Melhorar sempre é possível, mas começar fazendo bem é motivo de júbilo.
Com a pandemia, comecei a manusear uma eficiente plataforma de ensino remoto e pude entender a inimaginável realidade de jovens sequiosos por aprender. Mais do que isso. Passei a ouvir e a identificar cada aluno pela voz e a escutar, com o coração, suas histórias de vida. Muitas vezes, sem que percebessem, me comovi com as narrativas.
Sou e sempre serei extremamente agradecido aos meus alunos remotos e eterno devedor das lições que me propuseram. Um semestre inteiro dedicado à humanização do ensino, à generosidade e ao afeto. O corona vírus me revelou que o magistério, como sinônimo de ministério, nesta hora, é algo para além de compartilhar conhecimentos. É adoçar a relação e colocar-se a serviço da vida, pela estrada da educação.
O ano de 2020 me transformou não somente num professor com outra visão de mundo, mas num ser humano que pretende e pode ser mais generoso e humilde, confirmando a melhor definição de que já li sobre esse trabalho do qual, oficialmente, estou aposentado: professor, disse João Guimarães Rosa, não é o que ensina, mas aquele, de repente, aprende.
Quando o outono bateu à minha porta, uma primavera de esperança no futuro se instalou no meu jardim coberto de desilusões. Um ventinho varreu as folhas que já amareleciam e deixou espaço para uma nova temporada em que é permitido até sonhar. Eu, que não acredito mais em sonhos, plantei ali sementinhas de alegria e de uma plantinha chamada fé-na-vida, fé-no-homem.
Hoje, sou aprendiz.
Um dia serei professor.