“Diário de um isolamento – ou quase” LVII
O solitário adeus a uma paraense, que vivia da (e para) literatura
João Carlos Pereira
A crônica de hoje não era esta, mas a roda da vida (ou da morte?) fez com que eu a adiasse para amanhã. O texto a seguir foi publicado em “O Liberal”, no dia 13 de julho de 2013, na coluna “Os Bastidores”, que, por muito tempo, mantive no jornal, e foi preparado após uma agradável visita à escritora e tradutora Olga Savary, em seu apartamento, no bairro carioca de Capacabana.
Olga morreu hoje de manhã, a uma semana de completar 87 anos. A causa ainda é desconhecida. Espero que não tenha sido covid-19, porque seria uma perda a menos para essa desgraça.
Com a (re) publicação da entrevista, homenageio a escritora que sonhava ingressar na Academia Brasileira de Letras, mas foi recusada, pela segunda vez, há coisa de três anos, talvez. A mesma Academia que a premiou, não lhe deu os 21 votos necessários.
Não troquei uma vírgula da entrevista que ela leu e aprovou. Olga era detalhista, não deixava passar nada. Por isso foi considerada uma tradutora de primeira linha. A coluna “A Mona Lisa de Copacabana”, cujos parágrafos, no estilo da coluna, eram numerados, deve ser entendida no contexto de sua época, sete anos atrás, mas tão atual, como se houvesse sido escrita hoje.
0 a Mona Lisa paraense de Copacabana
1 Por trás dos óculos de Olga Savary não se esconde nenhum mistério. Os olhos claros, nascidos de uma rara mistura de russo paterno com ascendência francesa, sueca e alemã, com a força montealegrense da mãe, que era descendente de portugueses e neta de índio, revela uma imensa verdade. A verdade de uma mulher que, no próximo dia 21, vai completar 80 anos e da vida nada mais espera do que o trabalho cotidiano para poder se manter. Como poeta que é, sonha em publicar os onze originais que traz na gaveta, aguardando a forma definitiva em livro. “Chegou a hora de cuidar da minha obra. Já fiz mais de cinqüenta traduções, produzi três antologias, todas muito volumosas, revistas linha por linha. Só do Neruda traduzi treze obras. Chegou a vez de cuidar da minha obra”.
2 Nascida em Belém, onde viveu até os 3 anos, Olga viajou com a família para Fortaleza e depois voltou para o Pará. Foi aluna do Colégio Moderno (que considera superior ao Santo Amaro, das freiras beneditinas, no Rio, onde aprendeu idiomas) e contemporânea de Alcyr Meira, de quem é prima. “A Olga foi minha colega e era uma mulher lindíssima”, recorda o arquiteto Alcyr, que, na condição de presidente da Academia Paraense de Letras, entregou à escritora, semana passada, duas medalhas e o título de sócia correspondente da APL, no Rio. “A medalha do centenário foi a mais bonita de todas que já recebi na vida. Mas eu gostaria mesmo era de pertencer à Academia Paraense de Letras, porque sou paraense, sou de Belém, apaixonada por minha cidade e pelo Pará”.
3 Mérito para chegar à imortalidade é o que menos lhe falta. Uma vez, tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras, onde é amiga de quase todos os eleitores. Sem fazer campanha e visitar sequer um dos “imortais”, conseguiu 14 votos. Como não seguiu a liturgia da disputa, acabou perdendo a vaga para Tarcísio Padilha, cuja produção nem de longe se compara à sua. “Eu sou discreta demais. Sempre acho que, se me candidatar, tiro a vez de outro. Mas hoje, além de querer, eu preciso participar dessa família literária”. Escritora profissional, Olga vive do que escreve. Os direitos autorais não são suficientes e ela precisa virar as noites, traduzindo obras do inglês, francês e espanhol. A participação em eventos culturais também lhe rende algum dinheiro, mas às vezes a situação aperta de tal forma, que ela é obrigada a deixar de comprar o remédio da biabetes. “Como trabalho de 16 a 18 horas por dia, não tenho tempo de fazer exercício e me alimento mal. Daí veio essa doença horrorosa”.
4 Se tivesse, por exemplo, uma pensão oferecida pelo Governo do Estado, em reconhecimento pelo tanto que fez pelo Pará, Olga poderia se livrar do constrangimento de, todo mês, ir ao banco receber um salário mínimo de aposentadoria. “A vergonha não é para mim , mas para o Brasil”. Primeira mulher a produzir (e a traduzir) Hai-Kais e pioneira na corajosa temática da poesia erótica no Brasil, Olga está presente em mais de mil livros, seja como autora de prefácios, como colaboradora, como tradutora ou como autora. Na internet, há pelo menos 300 mil sites contendo seu nome.
5 “Cidadã” da rua Sá Ferreira, Olga era chamada, por alguns dos mais importantes pintores brasileiros do século XX (alguns do quais decoram a sala de sua casa), de “a Mona Lisa de Copacabana”. Amiga de Mario Quintana (com quem almoçava todas as vezes que o poeta gaúcho ia ao Rio) e de Drummond, de quem é prima e considerava como melhor amigo, ela coleciona mais de 50 prêmios literários. Só da Academia Brasileira de Letras foram seis e mais a indicação para o “Machado de Assis”, pelo conjunto da obra e dois “Jabutis”, da Câmara Brasileira do Livro. “O Drummond, sabendo das minhas origens, me chamava de Olenka, que quer dizer Olguinha, em russo. Só ele me chamava assim”.
6 Olga mora, há quase sessenta anos, no mesmo apartamento de três quartos, presente do pai, e do qual cuida sozinha. Ela faz a limpeza e lava a própria roupa – “uma forma de expulsar alguns demônios”. Celular não usa, porque ia soar como perseguição. O computador, porém, serve como uma máquina de escrever modernizada, já que não se entendeu com a internet.
7 Cristã sem religião, diz que Jesus mora em sua casa desde sempre. Nem por isso deixa de dar atenção a de Graziela Prodam, mística de altíssima categoria, que anunciou sua separação, na época em que o casamento (com Jaguar) parecia um sonho, e, anos depois, previu a data de sua morte. “Pelas contas dela, faltam dois anos. Eu não acredito muito nisso, mas tem um certo charme. Além do que, eu estou louca para ir embora, porque não estou acostumada a ficar doente”.
8 Com a agenda repleta de eventos (todos remunerados, é claro, porque é uma profissional) e com duas traduções enormes para realizar, uma das quais um romance de 600 páginas e sem nenhum diálogo, sabe que terá trabalho por pelo menos um ano. Enquanto isso, sonhará com a chance de voltar a Belém, a cidade amada. “Eu adoro isto aqui. Daqui só não gosto da maniçoba, porque tenho loucura pelo belo e maniçoba, convenhamos, não é bonita.” A paixão por Belém é tamanha, que, se não fosse paraense, iria buscar a nacionalidade no leste da Europa: minha segunda opção para nascer seria São Petersburgo, na Rússia.”