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SIMPLESMENTE, DHERBA

Há alguns dias, recebi o telefonema da minha eterna professora Lais Zumero, queridíssima do coração, com um pedido honroso e pra lá de especial: Escrever sobre a vida e a obra de Adherbal Meira Mattos. Primeiro, que a professora Lais Zumero, bacharel em direito na histórica turma de 1971 da Universidade Federal do Pará, colega de formatura do meu saudoso pai Arnaldo, é um patrimônio da língua portuguesa no Pará, daquelas professoras que, infelizmente, praticamente não mais existe; segundo, que um pedido dela, jamais será um pedido, será sempre uma ordem. À nossa amizade, admiração e carinho não há tempo, nem origem, nem destino. É eterna.

Portanto, minha professora, com a sua bênção, aqui, de pé, cumpro a obrigação.

Adherbal Augusto Meira Mattos. Ou, simplesmente, Dherba, como era chamado pelos mais próximos. Um jurista. Um professor. Um advogado. Um acadêmico. Um escritor. Um conferencista, como poucos. Um humanista, como aqueles de outros séculos. Um sábio. Uma lenda. Dherba era meu primo de “segundo grau”, mas, pela idade, era um tio ou um avô. Eu sempre o chamava de professor. Dherba era primo legítimo de “primeiro grau” do meu pai Arnaldo, filho da minha tia-avó Eynar, irmã do meu avô Silvio. Era o segundo neto mais velho (Entre o Paulo e o Alcyr) do Senador Augusto Meira, o Velho Meira, nascido no Engenho Diamante em Ceará Mirim, no Rio Grande do Norte, bisneto do Barão de Mipibu, que foi casado com dona Anésia Pinto Guimarães de Bastos (Anésia de Bastos Meira), esta neta do Barão de Santarém. Meus bisavós Augusto e Anésia tiveram nove filhos, seis homens e três mulheres, entre elas a dona Eynar de Bastos Meira, mãe do nosso homenageado, culta, estudiosa, inteligente, latinista, poeta, escritora, poliglota. Era um traço do Velho Meira fazer todos os seus filhos cultos e estudiosos, orientado por ele próprio ao redor de uma grande mesa, diariamente, na Casa Grande, localizada na Avenida Brás de Aguiar esquina com Benjamin Constant, onde, hoje, está um edifício que leva o seu nome, nos mesmos moldes que foi criado e educado pelo seu pai, o jurista potiguar Olyntho José Meira, um homem enciclopédico, que foi seu único professor na biblioteca do Engenho Diamante, até adentrar na Faculdade de Direito do Recife, em 1895.

Dherba nasceu no dia 28 de dezembro de 1933, fruto do matrimônio, em primeiras núpcias, da tia Eynar com Raimundo Adherbal da Serra Pinto Mattos, que veio a falecer muito cedo, aos 29 anos, de Tifo, quando Dherba tinha apenas três anos de idade. Anos depois, um colega de turma do meu avô Silvio na Faculdade de Direito, chamado Orlando Chicre Miguel Bitar, começou a frequentar a Casa Grande, nas reuniões familiares de saraus literários, encantando-se com a então viúva e latinista Eynar, nove anos mais velha que ele. Enamoraram-se, casando anos depois, quando Dherba tinha oito anos, em 1941. Silvio e Orlando bacharelaram-se na turma de 1942, ao lado do também grande jurista Otávio Mendonça, com quem, depois, Orlando fez sociedade de advocacia no escritório Mendo-Bita, localizado nos altos da Alfaiataria Pinto, onde, mais tarde, Dherba começou a vida profissional.

Em uma entrevista pessoal que fiz com o nosso homenageado, em fevereiro de 2018, cujo áudio tenho para eternidade, ele próprio relatou que, aos nove anos, fez uma certa “tolice de criança” no então Colégio Moderno, quando o diretor chamou Orlando Bitar, a fim de resolver o impasse. Ali, começou a relação idêntica de pai e filho entre ambos, que perdurou a vida inteira, até o falecimento de Bitar, em 1974. O amor e a admiração que Dherba tinha por Orlando era acima de qualquer sentimento. Todas as vezes que dava entrevistas sobre Bitar, sempre se emocionava e vinha às lágrimas.

Com notas não tão boas no colégio até então, passou a ter Orlando como seu único professor, daqueles que, ao sair para o trabalho, deixava as leituras e exercícios diários, para que, de noite, fossem revistos e discutidos entre ambos. Imediatamente, passou a ser o primeiro lugar da escola. Quando Dherba prestou vestibular, Orlando tratou de ensinar a lógica inteira das obras de Camões, dentre tantas outras línguas e disciplinas, inclusive a matemática. Dherba foi o primeiro lugar no concurso, ao entrar na Faculdade de Direito. Orlando sempre muito pai, e Dherba, sempre muito filho. Bitar, na sua obra “Máximas de Goethe”, dedicou a Eynar a máxima nº 243, que diz: “Seja qual for o objeto, só se aprende bem através de quem se ama”. E certa vez, Orlando, já muito doente, escreveu ao professor Adherbal: “Só tive uma mulher, Eynar, é um só filho, você”. E Adherbal finaliza o prefácio das “Máximas de Goethe” numa frase que nos leva às lágrimas: “Mais bela e pura, todavia, para mim, é a máxima que ele me deixou, do próprio punho pouco antes de ser levado de nosso convívio: “Adoro meus netos; beijos para você e Maria Helena, esposa perfeita. Grato por sua bondade de filho”. Essa, não necessita de tradução.”

Do casamento de Orlando e Eynar nasceu uma filha, Eleonora, quando Dherba tinha quinze anos, tristemente falecida no mesmo dia. Seria a irmã sempre desejada. Orlando nunca conseguiu adotar Dherba, embora essa fosse sua intenção, pois não havia a diferença de quinze anos, exigida por lei. Contudo, foi seu pai afetivo, espiritual, de coração, seu pai verdadeiro. E com o principal requisito entre eles, o amor. Dherba bacharelou-se em direito pela Universidade Federal do Pará no dia 08 de dezembro de 1956 e tinha o sonho de ser diplomata. Registrou-se na OAB/PA sob o número 504, mas foi passar um ano no Rio de Janeiro, em estudos. Regressando a Belém, foi trabalhar no escritório Mendo-Bita, e, mais tarde, abriu sua própria banca de advocacia, ao lado do seu mestre e pai afetivo, Orlando Bitar.

Nesta mesma época, conheceu sua única e eterna Maria Helena, com quem se casou no dia 11 de junho de 1959, e com ela viveu toda uma vida, por 65 anos. Do matrimônio, nasceram os filhos Bruno, Marcelo, Renato e Brenda, que lhe deram os netos Bruno, Juliana, Otávia, Ricardo, Nathalia, Maria Eduarda e os bisnetos Bruna e Bento, deixando um eterno legado a uma linda família.

A trajetória profissional do nosso homenageado é recheada de títulos, obras e honrarias. Doutor em Direito, era Professor Titular de Direito Internacional da Universidade Federal do Pará, de onde foi diretor e vice-diretor do Centro Socioeconômico e da Faculdade de Direito, um dos mandatos, inclusive, na gestão do então Reitor Clóvis Malcher, meu avô materno, entre os anos de 1973 e 1977. Da Universidade, recebeu a Palma Universitária Classe Especial (ouro) e a Medalha da Faculdade de Direito. Membro diversas entidades culturais, foi fundador da Academia Paraense de Letras Jurídicas (APLJ), de onde éramos confrades, eu na Cadeira 27 e ele na Cadeira 34, cujo patrono dele era, por óbvio, Orlando Bitar. Mais tarde, foi eleito o segundo paraense a compor a vetusta Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ), fundada por Silvio Meira em 1975, com sede no Rio de Janeiro, ocupando a Cadeira de número 29, cujo patrono é Silvio Romero.

Dherba também era membro titular da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI), do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB Nacional), do qual foi vice-presidente, do Instituto dos Advogados do Pará (IAP), da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, do Instituto Luso-Brasileiro de Direito Comparado, da Academia Brasileira de Direito Aeroespacial, do Instituto de Estudos de Política Internacional e Diplomacia, entre outros. Recebeu inúmeras comendas, nacionais e estrangeiras, a exemplo do Prêmio Inglez de Souza, do Instituto dos Advogados do Pará, maior condecoração jurídica do Estado, pelo conjunto da sua obra, da Ordem do Mérito Advocatício, da OAB/PA, da Medalha Eça de Queiroz, do Governo de Portugal, Medalha do Mérito Aeronáutico, entre tantas outras. Foi, ainda, Secretário de Justiça do Estado do Estado do Pará. Inclusive, a XXIII edição do Congresso Brasileiro de Direito Internacional (CBDI), organizado pela Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI), presidida pelo querido amigo Wagner Menezes, da USP, discípulo de Dherba, e que será realizada em Belém do Pará no mês de agosto de 2025, por ocasião da COP30, terá como patrono o professor Adherbal Meira Mattos

Tendo cursado a Escola Superior de Guerra (ESG), realizou, lecionou e participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, doutorado e livre docência no Brasil e fora dele, a exemplo da ONU, OEA, Berkley, Stanford, UCLA, Columbia, Nova Iorque, Tóquio, Georgetown, Denver, Sorbonne, Venezuela, Colômbia, Argentina, Portugal, USP, PUC, UERJ, UFRJ e diversas Universidades Federais, como Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outras. Autor de incontáveis livros (mais de 30) e artigos jurídicos, publicados pelas melhores editoras e revistas do país, destacando-se o Curso de Direito Internacional Contemporâneo, Direito do Mar e Poder Nacional, Direito Internacional Público, Amazônia e outros estudos, O Novo Direito do Mar, Direito e Relações Internacionais, Direito Internacional, Amazônia e Direito Brasileiro, O Homem e o Mar, Direito, Política e Meio Ambiente, Estudos de Direito Internacional, Direito Internacional e o Direito Brasileiro, e por aí segue.

Dherba era um leitor e escritor voraz, sempre na velha máquina de escrever manual, sentado à mesa da biblioteca na sua magnífica residência, na Travessa Curuzu, número 2000, local onde tive a imensa alegria de sentar por diversas vezes ao seu lado, privar da sua inteligência entre bons papos e debates jurídicos, regado a um bom scoth e o maravilhoso empadão da tia Maria Helena. São dias que ficarão no coração e na memória. Tivemos, inclusive, há algum tempo, a ideia de criarmos o “DherbaDoyle”, uma reunião de juristas em sua biblioteca aos sábados de tarde, para conversas e saraus jurídicos e literários, uma espécie de paráfrase ao “SabaDoyle”, que existia no Rio de Janeiro, na residência do intelectual Plínio Doyle. Pena que não conseguimos. Dherba era um conferencista como poucos, daqueles que não se percebia o tempo passar. Tinha o dom da oratória. Se falasse por três horas, absolutamente ninguém reclamava. O tempo era o dele e da sua magistral forma de proferir conferências.

Era, como muito orgulho, membro efetivo do Instituto Silvio Meira (ISM), fundado em 2013, do qual sou presidente desde então. Não apenas fundou o Instituto ao meu lado, como me acompanhou mundo afora em inúmeros congressos que realizamos, em muitos locais do Brasil e da Europa. E tive a grata honra de homenageá-lo em vida, quando realizamos o VII Congresso Luso-Brasileiro de Direito do ISM, em Lisboa, naquele outubro de 2018, do qual ele foi patrono, ano em que se comemorava os 30 anos da Constituição Federal e os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Foi um evento memorável, todo em sua homenagem.

Dherba faleceu no dia 03 de março de 2025, aos 91 anos, pleno, lúcido, lendo e escrevendo, com uma memória absolutamente invejável, na mesma idade e condições pulsantes de inteligência que seu avô, o Velho Meira. Eu estava em Lisboa, quando recebi a notícia. Da terra que ele tanto amava, chorei e rezei pelo professor, como eu o chamava e o respeitava. Sei que ele me tinha como um filho, um neto, além das nossas heranças familiares de sangue. Me ligava sempre, quase toda semana, seja para debater temas jurídicos, seja pra me convidar à casa dele ou a questionar de como andava o Instituto. Era um desbravador. Um ferrenho defensor da Amazônia. Foi um dos poucos homens no mundo que privou de uma reunião e uma conversa privada de mais de uma hora com o monumental Hans Kelsen, na Universidade de Berkley, nos anos 70. Uma dádiva a qualquer jurista. Sobre este episódio, não cansava de elucidar a simplicidade de Kelsen, que chegou à reunião dirigindo seu Ford Bigode.

Foi toda uma vida dedicada à família, à cultura e à pátria. Parafraseando as palavras que ele próprio escreveu em memória a Orlando Bitar, escrevo: Dherba foi um sábio. Um gênio. Contrariando o dito de Sêneca, um sábio que não bastava a sim mesmo, um sábio esquecido de si mesmo. O toque de gênio era sensível em sua simplicidade e humildade, aliada à solidez de sua cultura. Foi um humanista, pleno de harmonia de alma, unindo sua grandeza a uma infinita bondade. Apolíneo e místico, costumava dizer que ninguém era insubstituível, mas ele o foi. Fazia o bem pelo mero prazer estético de fazer o bem. Sua maior emoção era dar uma aula, o que fazia com renovável prazer. Foi, antes de tudo e acima de tudo, um Professor. E era nessa condição que falava e escrevia.

André Augusto Malcher Meira

Presidente do Instituto Silvio Meira (ISM). Mestre e Doutor em Direto. Titular da Academia Paraense de Letras Jurídicas (APLJ). Ex-presidente e Titular da Academia Brasileira de Direito (ABD). Advogado e professor da Universidade da Amazônia (UNAMA).

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um comentário

  1. Ivone da graça Nunes homrich

    Maravilhoso texto em homenagem a um dos maiores mestres e conferencista que tivemos a honra de receber em nossa Faculdade de Direito da UFPEL, quando homenageamos nossa ilustre dra Gilda Corrêa Russomano. Sua presença e de Maria Helena sua amada esposa marcou de forma indelével a todos nós. Sua obra deixa um legado extraordinário. hoje estamos mais tristes.

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